Sobre o fox bean e outras lendas...
Ensei Neto
Você já ouviu falar num tipo de grão de café conhecido por Fox Bean?
Há uma lenda que diz que esse tipo de grão é muito apreciado por torrefadores europeus porque sua película de cor marrom é responsável por conferir mais doçura à bebida do café.
A fruta do cafeeiro é composta, como pode ser observada nesta foto, como se segue: a Semente, que é torrada para originar a bebida, tem uma fina película denominada Película Prateada, que se desprende durante a torra devido ao aumento volumétrico da semente em razão da Pirólise; entre o Pergaminho, que recobre a Semente e sua Película Prateada, e a Casca Externa há a Polpa, que é formada por uma calda açucarada e minerais.
A Polpa pode envolver também a Semente e a Película Prateada. Quando a fruta amadurece, inicia-se o processo conhecido por Senescência, quando ela se desconecta da planta através do fechamento dos dutos por onde passa a seiva. A partir disso, a fruta entra no estágio Passa, quando a Polpa se concentra devido à evaporação da água que ocorre através da Casca Externa. Essa calda açucarada muitas vezes acaba se aderindo à Película Prateada, conferindo-lhe coloração marrom com reflexos brilhantes semelhante à pelagem de uma raposa sob generoso Sol. Essa aderência da calda desidratada à Película Prateada passou a ser conhecida como Fox Bean, comparação romântica (“fox” em inglês significa raposa, enquanto que “bean” é o mesmo que grão), cuja magia foi reforçada com o aroma adocicado que a semente ganha nesse processo.
Alguns torrefadores europeus que adquiriram lotes de café com a presença dessas sementes notaram que a bebida resultante era bastante adocicada e passaram a acreditar que as notas de Caramelo presentes seriam devido à película marrom do Fox Bean. E assim surgiu a lenda de que esses grãos de café seriam importantes para conferir o tom adocicado à bebida!
Mas, afinal, onde termina a lenda e começa a realidade científica?
A Película Prateada é constituída de celulose, que depois de formada não sofre qualquer alteração em suas dimensões. Tanto é verdade que quando ocorre a sequência de reações de Pirólise durante o processo de torra de café, a Película se rompe num evento que denomino de “Efeito Hulk”, numa comparação à famosa transformação do Dr. Banner no verdoso gigante.
Por outro lado, a película esfarrapada, que ficou até com toques de caramelo devido ao açúcar aderido, simplesmente se vai pelos dutos de ar, não fazendo, portanto, qualquer contribuição de sabor à bebida!
Então, por que é que cafés com esses grãos são adocicados e apresentam notas de Caramelo na bebida, se a Película é levada pelo fluxo de ar do torrador?
Na verdade, o efeito Fox Bean, que é a cor marrom devido aos açúcares da calda concentrada aderida à Película Prateada, nada mais é do que um indicador de que a fruta amadureceu. Simplesmente isso!
Costumo dizer que, assim como em outras frutas classificadas pelos botânicos como Não Climatéricas, isto é, que somente amadurecem enquanto estão ligadas à planta, a do cafeeiro tem em sua madureza o início de sua morte. Sim, essas frutas morrem no seu auge, quando o teor de açúcares definido pelo DNA é alcançado.
Portanto, se a fruta ficou madura, o teor de açúcares nesse momento fica em torno de 18% m/v ou, caso pudesse ser medido nesse exato momento, 18o Brix, o que pode ser considerado alto para os padrões vegetais. Ao se torrar sementes de frutas maduras, que sempre darão bebidas classificadas como Mole pela Metodologia COB – Classificação Oficial Brasileira ou com mais de 80 pontos SCAA, a nota de Caramelo surge naturalmente, sendo considerada, portanto, obrigatória para cafés de alta qualidade ou especiais!
E tenha certeza de que se as frutas estavam maduras, suas sementes depois de torradas e moídas, proporcionarão bebidas naturalmente adocicadas e encorpadas, apresentando-se ou não como Fox Bean...
Esse fato nos leva a desmantelar outra lenda, agora rural: algumas pessoas afirmam que os açúcares da polpa da fruta do cafeeiro podem migrar para a semente durante a secagem.
É uma afirmação tão tola quanto pensar que o plantio de plantas de damascos ou de abacaxi junto aos cafeeiros irão conferir notas de sabor dessas frutas à bebida...
A polpa desempenha papel de isca para os animais com o objetivo de criar um estímulo para que a fruta seja consumida e sua semente possa, assim, ser propagada. É uma estratégia muito inteligente das plantas, pois se não houvesse esse atrativo, os animais não consumiriam seus frutos e, consequentemente, não seria possível que uma semente originasse nova planta em diferente local.
Tecnicamente, a composição da polpa é um espelho do que existe na semente, principalmente no tocante aos açúcares. Assim sendo, estando a fruta madura, o sabor da polpa será irretocavelmente doce. No entanto, a despeito disso, os açúcares não tem como migrar para o interior das sementes devido à sua solubilidade em água, que não é alta, e pela baixa permeabilidade junto às paredes celulares. O que pode ocorrer é a que a polpa açucarada fique aderida ao Pergaminho e, eventualmente, à Película Prateada, transformando-a num Fox Bean.
O teor de açúcares da semente é definido pelo seu DNA e sua formação através do seu Ciclo Fenológico ou, simplesmente, Ciclo da Fruta, que vai da Florada à Senescência, e que dura em média 240 dias; assim, não seriam apenas algumas horas que fariam aumentar tanto o teor de açúcares...
Ah, e tem ainda uma lenda rural que é fantástica: as flores do cafeeiro sempre abrem aos domingos.
Bem, desde que comecei a andar pelos Campos do Café, sempre ouvi esta história, em todos os lugares. Dizem que os cafeeiros fazem isso para agradar ao produtor.
E esta, sim, é uma lenda que deve perdurar...