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São Paulo

The Coffee Traveler by Ensei Neto

MERCADO

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A Cafeicultura em tempos de climas extremos

Ensei Uejo Neto

Preparando o solo para plantio de café. Foto: Ensei Neto/Arquivo Pessoal.

Há um consenso de que o clima mudou, pois seus reflexos estão sendo percebidos e ainda compreendidos.
A vida em nosso planeta depende de um delicado equilíbrio que a Natureza sempre conduziu de forma impecável, mas que a ação humana vem provocando alterações de grande impacto.

Os princípios conceituais de produção e da qualidade de qualquer produto agrícola estão fortemente vinculados às condições climáticas, tendo nas floradas o seu ponto de partida.

Sabe-se que a indução dos botões florais e a floração, no caso dos cafeeiros, dependem de diversos fatores como a arquitetura da planta, do espaçamento empregado na lavoura e características genéticas entre outros. Hipoteticamente, vamos admitir que ocorra uma única florada.

 A florada e a consequente fecundação definem o potencial produtivo de uma lavoura. É a primeira expectativa que o produtor tem e que lhe permite fazer algumas contas preliminares sobre o que poderá ser seu faturamento ao final da safra.

Sabe-se que plantas de Coffea arabica tem 44 cromossomos, o que lhe dá, digamos, um ar mais esperto em relação as de Coffea canephora com seus 22 cromossomos.

Cafeeiros Mundo Novo, Bourbon e Catuaí se orgulham de não dependerem de terceiros pois são autopolinizantes, restando uma quantidade marginal que poderia eventualmente ser trabalhada por agentes externos. Os clones de Robusta e Conilon dependem da ajuda imprescindível das abelhas para que a polinização aconteça.

Se por um lado, o maior número de cromossomos das variedades do arabica lhe empresta uma suposta superioridade, é onde reside sua maior fragilidade, pois há um evidente processo de seleção até se chegar a um indivíduo com características de homozigoto.
A pureza genética pode ser tanto do bem quanto do mal.

O que dá aos canephoras maior capacidade de adaptação é justamente a necessidade de sua fecundação acontecer por polinização cruzada, aumentando exponencialmente a variabilidade das características de seus indivíduos.

 Só para lembrar: nosso universo tem como característica ser formado por indivíduos, daí ser tão importante o chamado “olhar estatístico” para tudo o que ocorre na Natureza. Não há necessidade de saber fazer os complicados cálculos, mas, apenas ter a compreensão do impacto de um evento em relação ao número de envolvidos.

 O pólen, que é responsável pela fecundação das flores, basicamente é constituído de proteínas, o que explica a necessidade de se dispensar extremo cuidado na sua conservação e em seu uso. Como as flores sempre ficam ao tempo, a intensidade de raios ultravioleta pode afetar a viabilidade do pólen.

Admitindo que nosso planeta é quase esférico, levemente abaulado, para melhor compreender a quantidade de luz num determinado local, criei este gráfico:

Luminosidade ao longo do ano para uma determinada latitude. Ensei Neto

Lembro que a latitude tem correlação direta com a quantidade de luz que um determinado local em nosso planeta pode receber ao longo do ano, levando em conta a variação devida ao deslocamento do eixo de rotação, que é de 23º27’.

Anos atrás, quando me iniciei no mercado de café ao trabalhar na fazenda do meu sogro, um fato que me chamava muito a atenção era a maior quantidade de grãos moca nos lotes produzidos naquela fazenda, na região de Paracatu-Unaí, MG, em relação aos do Triângulo Mineiro, principalmente Patrocínio. Comecei, então, a levantar os dados de diferentes regiões durante 8 anos e cheguei a este gráfico que apresenta a frequência de grãos moca em razão da latitude de produção.

Incidência de grãos moca de acordo com a latitude. Fonte: Ensei Neto.

Ficou claro que havia uma relação direta entre intensidade de raios ultravioleta com a maior quantidade de mocas nos lotes produzidos em fazendas localizadas nas regiões de menor latitude.
Os trópicos são linhas imaginárias que representam, digamos, uma expansão da linha do Equador devido à inclinação do eixo rotacional da Terra. Isso explica o porquê do Trópico de Capricórnio ter latitude de exatos 23º27’, que passa nos limites do município de São Paulo.

Localidades com maior proximidade à linha do Equador recebem uma carga de ultravioleta muito intensa porque sua incidência é praticamente perpendicular à Terra, sofrendo menos perdas ao atravessar a atmosfera. Esta é a razão da variação da quantidade de moca em diferentes latitudes.

Grão moca ou peaberry, torrado. Foto: Ensei Neto.

Apesar da glamurização e até gourmetização dos grãos moca, com diversas lendas rurais e urbanas, como a de que é um grão mais denso ou que absorveu os nutrientes de duas sementes, a verdade é que ele representa efetivamente uma perda real de produtividade, pois é resultado de fecundação de um único alojamento. De dois indivíduos potenciais, restou apenas um.

Outro efeito de fecundação defeituosa é a frequência do chamado grão mal formado, que nos países centroamericanos e na Colômbia recebe o nome de flotador, enquanto que compradores internacionais o denominam de floater, em inglês.
É um grão que apresenta estrutura débil, maior fragilidade da parede celulósica e menor capacidade de se tornar um indivíduo completo, o que pode ser inferido pela menor quantidade de açúcares e de ácido cítrico. Sua densidade é muito menor do que a de um grão saudável, o que leva a um impacto direto na produtividade da lavoura.

Grãos mal formados ou flutuadores (floaters). Foto: Ensei Neto.

A qualidade do café tem relação direta com a uniformidade de um lote, isto é, de como são os indivíduos que compõem esse conjunto. Quanto mais parecidas forem suas características, tanto mais homogêneo é o lote.

A partir da premissa que exista uma única florada, a uniformidade do lote será definida pela chamada “janela de fecundação” das flores, que estabelece a sincronia do ciclo fenológico ou ciclo de cada fruta. A distribuição espacial das flores numa roseta faz com que cada qual receba diferente carga de luz e consequente exposição ao calor, o que leva aos diferentes momentos de fecundação.

Janelas de fecundação curtas, como aquelas decorrentes de suficiente estresse hídrico, levam à maturação com alta uniformidade.

O que molda a geografia econômica do mundo são os grandes eventos climáticos.

O Brasil é o país produtor de café com a maior amplitude de latitude das suas origens, desde o Maciço do Baturité, Ceará, com 6º Latitude Sul, ao Paraná, com suas regiões subtropicais, isto é, maior que 23º27’ Latitude Sul.
Outro aspecto interessante da América do Sul, onde o Brasil ocupa praticamente toda a parte oriental e central, é o formato de triângulo com um dos vértices apontado para o Polo Sul, onde se originam poderosas massas polares que podem levar extremo frio às regiões cafeeiras.

Num passado recente, foram 2 as chamadas grandes geadas, a primeira ocorrida em 1975, que mudou o mapa cafeeiro do Brasil ao abrir uma nova região que se tornaria referência em tecnologia e produtividade: o Cerrado Mineiro.
Ao dizimar cafezais do Norte do Paraná, Alta Paulista, Noroeste e Sorocabana, em São Paulo, aquele evento fez com que cafeicultores dessas origens buscassem novos locais para plantio, longe do alcance das massas polares.

A segunda grande geada aconteceu em 1994, coincidindo com a implantação do Plano Real, que fez o país sair de um longo período de hiperinflação.
Esse evento de grande impacto destruiu mais de 90% do parque cafeeiro do Paraná, além causar grandes estragos na Alta Mogiana, Sul de Minas e na novata região do Cerrado Mineiro.
Uma nova reconfiguração do mercado aconteceu, desta vez com a emergência de um Tigre Asiático, o Vietnã e seus robustas. Para se ter idéia do crescimento de sua produção, em 1994 aquele país mal alcançou 250 mil sacas de 60kg, sendo hoje o segundo maior produtor mundial de café com mais de 30 milhões de sacas de 60kg.

A geada cria desdobramentos por pelo menos dois anos seguintes, tanto no campo das cotações e preços, com efeitos imediatos, como no desempenho das lavouras, resultados que são percebidos gradativamente.
O efeito mais perverso é o da seca prolongada após o intenso resfriamento, similar ao que o ar condicionado faz no ambiente. A estiagem que se segue tem na amplitude térmica exagerada sua maior marca.
O ar seco se constitui em barreira menor para a incidência dos raios ultravioletas, que chegam com maior intensidade à superfície da Terra.

Fenômenos climáticos que mais têm recebido atenção nos últimos anos é a dupla El Niño e La Niña, que ficaram conhecidos ainda na década de 1990. Quando atuam, modificam dramaticamente a distribuição de chuvas na América do Sul, com reflexos extremamente fortes no Brasil.
Neste estudo climático, foi feito um extrato das temperaturas em anos de La Niña, cujos resultados apresento a seguir.

Observe que existe uma regularidade na chegada das massas polares, com predominância de duas ondas. Após a ocorrência da segunda onda, a amplitude térmica se torna muito grande, ultrapassando 12ºC de diferença.

Em 2021, as duas ondas se confirmaram, talvez com maior intensidade pelo fato de ter ocorrido o fenômeno La Niña pelo terceiro ano consecutivo, algo inédito até então.
A estiagem que se seguiu foi uma das maiores já vistas em diversas partes do Brasil, principalmente na faixa onde se localiza a chamada “calha de convergência climática”, que tem origem na costa peruana e abrange Estados como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, que corresponde a uma área responsável por mais de 70% da produção agrícola brasileira.

O ar extremamente seco com altas temperaturas, reflexo da mínima barreira enfrentada pelos raios ultravioleta, levou a um efeito até então pouco visto: a perda da capacidade de fecundação das flores dos cafeeiros.
O pólen foi definitivamente afetado pelo calor extremo, desnaturando-se e, como resultado, levando a uma baixíssima taxa de fecundação em algumas regiões.
Um dos locais que esse fenômeno de clima extremo ocorreu em 2021 foi no Cerrado Mineiro, cuja análise está neste gráfico:

Temperatura e Fecundação. Fonte: Agrobee Tech.

Em algumas regiões, já estão sendo enviados aos armazéns os primeiros lotes  da atual safra e em boa parte deles está sendo observada uma quantidade muito acima do normal de grãos moca.

Isso representa uma irreparável quebra de produção.

O clima já se mostrou muito seco ainda em fins de junho, quando se esperava uma segunda onda de frio tão intensa quanto a que ocorreu em meados de maio. No entanto, o que se observou foi o gradativo aumento da amplitude térmica, que em meados de julho alcançou mais de 15ºC em diversas regiões cafeeiras.

Quais as estratégias que podem ser adotadas para minimizar o impacto desse cenário de clima extremo?

Como deve se reconfigurar o mercado de café, ante essas mudanças climáticas?

Existem algumas alternativas que têm se mostrado eficazes como a polinização assistida e o controle biológico de pragas e doenças, além de manejo conservacionista nos cafezais, que enfocarei em breve.